quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Análise da crônica A descoberta do mundo



No texto  seguir, a narradora-personagem nos conta fatos de sua adolescência e leva o leitor a refletir sobre a importância desse momento na vida de todos nós.                                
                                                   Texto: A descoberta do mundo

        O que eu quero contar é tão delicado é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.
        Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce , estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
          Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube coisas que nem eu mesma sei que sei.
         As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância.
         Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
         Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era um amenina e não soube falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.
        Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros.
        Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
        Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amo. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
        Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar um flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino.
       Pois juro que a vida é bonita.
                                 ( Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco. p. 113-115
Sobre a autora:
             Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, em 1917, e veio ao Brasil aos dois meses de idade. Formou-se em Direito e trabalhou como jornalista. Viveu muitos anos no exterior e faleceu em dezembro de 1977, no Rio de Janeiro.
             Considerada uma das grandes escritoras da literatura brasileira, escreveu contos e romances. Entre seus livros, encontramos A DESCOBERTA DO MUNDO, FELICIDADES CLANDESTINA, A MAÇÃ NO ESCURO, LAÇOS DE FAMÍLIA, ÁGUA VIVA e A HORA DA ESTRELA, que teve uma premiada versão para o cinema.

Vocabulário:

Precoce: prematuro        
turvar: escurecer, toldar      
intacto: ileso, inteiro      
pudor: vergonha, recato
Lucidez: perspicácia,acuidade
Sonso: dissimulado,fingido
Perplexidade: estado ou estado de perplexo,hesitação
Traumatizante: que causa abalo (físico ou moral)
Reconciliar: conciliar, harmonizar


Construindo e Reconstruindo os Sentidos do Texto

Crônica: gênero textual que se caracteriza por abordar acontecimentos aparentemente banais do cotidiano que, captados pela sensibilidade do cronista, podem nos levar a repensar a realidade que nos cerca, a  observá-la sob novos ângulos.                                                                                                                     

1.      O texto lido é uma crônica, publicada originalmente no  jornal do Brasil, em 1968.

A.    Releia o primeiro parágrafo e observe se:
ü  Os verbos e pronomes estão na 1ª ou 3ª pessoa; _________________________________
ü  Os verbos estão, em sua maioria, no presente ou no passado. _____________________________________________________________________________

B.     Informe o tipo de narrador que o texto apresenta, baseando-se nas questões anteriores.
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2.      Como a narradora faz sua própria descrição?
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3.      Por que o texto tem por título A descoberta do mundo ?
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4.      No texto, a narradora rememora fatos que aconteceram em sua infância.

A)    A que ela se refere quando menciona “os fatos da vida”?
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B)    Como diz se sentir em relação às colegas?
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C)    Como se comportava diante de colegas que pareciam tudo conhecer sobre “ o mistério da vida”?
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D)    Embora mencionando seu atraso em relação “aos fatos da vida”, a narradora se diz precoce no que se refere a muitas outras coisas. Em que sua precocidade se manifestava?
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E)     Por que ela demorou a reunir coragem para fazer perguntas às amigas?
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F)     Como a narradora se sentiu quando ouviu as explicações dadas pela colega a que contou seu segredo? Justifique.
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5.      Como a narrador explica o fato de continuar, mesmo adulta, ainda atrasada em muitos terrenos?
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Caros colegas professores, o gabarito será postado em breve.


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