Entrevista com Philippe
Perrenoud sobre a democratização do ensino
Para o sociólogo suíço, o professor precisa de
capacitação para se tornar um tradutor do conhecimento e conseguir modificar
sempre sua maneira de explicar até que todos os alunos aprendam
Márcio
Ferrari (novaescola@atleitor.com.br)
Philippe
Perrenoud. Foto: Juliet Piper
As mudanças de rumo que ocorreram na educação
brasileira na última década não foram fruto do acaso. Elas buscaram responder a
um desafio: desenvolver no aluno uma série de competências e prepará-lo para
entender e transformar o mundo em que vive. As competências são objeto de
estudo do suíço Philippe Perrenoud, cujas ideias sobre prática pedagógica
influenciaram as reformas educacionais no Brasil.
Em sua
última visita ao país, em julho, para participar de um seminário sobre educação
e competitividade econômica realizado em Brasília, Perrenoud questionou a
validade do próprio tema do encontro, que considerou "excessivamente
ambíguo". Apesar disso, reconheceu ser "inevitável" levar em
conta a competitividade de um país em tempos de economia global ao investir na
educação. No sistema educacional, ele distingue duas instâncias de competição
igualmente prejudiciais. A primeira é a que ocorre dentro de uma escola ou de
uma sala de aula. A segunda é a que acontece entre as escolas e que pode
levá-las a recusar os chamados "estudantes de risco", em lugar de dar
oportunidade a todos. "Em educação, não deve haver perdedores", ele justifica.
Com a mesma ênfase que coloca na importância da universalização do ensino, o especialista fala das novas ambições e perspectivas educacionais.
Por que o desempenho do Brasil e dos países da América Latina em geral no ranking internacional de educação ainda é tão ruim?
Com a mesma ênfase que coloca na importância da universalização do ensino, o especialista fala das novas ambições e perspectivas educacionais.
Por que o desempenho do Brasil e dos países da América Latina em geral no ranking internacional de educação ainda é tão ruim?
PERRENOUD
Em uma pesquisa recente a esse respeito, vi que o Brasil ocupava a 37a posição.
Mas mesmo a Suíça, que é um país rico e desenvolvido, ficava na 17a. Então, não
há motivo para desespero. Existem grandes desigualdades mesmo entre nações
muito ricas. Talvez haja tanta distância entre a Finlândia e a Suíça, que são
dois países europeus pequenos e ricos, quanto entre a Suíça e o Brasil. Não é
apenas uma questão de desenvolvimento, mas um conjunto de fatores complexos. O
Brasil enfrenta problemas diversos e, portanto, não me surpreende que a
educação brasileira não seja, hoje, ideal. É um desafio extraordinário
mobilizar tantos recursos e pessoas. Nenhum governo pode fazer milagres.
A que o senhor atribui o sucesso de suas ideias aqui no Brasil?
A que o senhor atribui o sucesso de suas ideias aqui no Brasil?
PERRENOUD
Sei do que estou falando, tento ser concreto e busco não me afastar da
realidade prática. Além disso, talvez os problemas enfrentados pela escola
sejam muito semelhantes em todos os países, apesar das desigualdades de
desenvolvimento e da diferente posição geográfica. Em lugar nenhum a educação é
eficaz o bastante. O fracasso escolar e a exclusão são problemas universais,
assim como a necessidade de levar em conta as diferenças individuais e de uma
pedagogia mais construtiva. Por isso, acho natural que possamos nos reconhecer
em trabalhos que vêm de outros continentes.
Os problemas na educação são consequência da crise do mundo atual ou são crônicos?
Os problemas na educação são consequência da crise do mundo atual ou são crônicos?
PERRENOUD
Eles mostram uma redefinição das ambições das políticas educacionais. No século
19, a idéia de educação como um direito de todos era revolucionária. Até hoje,
no entanto, alguns países conseguiram escolarizar apenas 10% ou 20% de sua
população. Já nas nações desenvolvidas, atualmente quase todo mundo vai à
escola. Mas, onde todos já sabem ler, escrever e contar, isso já não basta. À
medida que o objetivo da escolarização é atingido, ele se desloca. É normal que
o sistema esteja sempre em discordância com relação às ambições que se
estabelecem na modernidade, na complexidade, na tecnologia.
O peso de novas metas pode desestruturar o sistema educacional?
O peso de novas metas pode desestruturar o sistema educacional?
PERRENOUD
Não inventamos novas ambições para provocar o fracasso do sistema. Deve-se
reconhecer que o nível mundial de educação jamais esteve tão elevado e as
pessoas instruídas jamais foram tão numerosas. Mas, diante das necessidades de
uma sociedade cada vez mais complexa, existe um déficit não absoluto, mas
relativo às exigências dos tempos modernos. É fundamental compreender isso. A
culpa não pode ser atribuída só à escola, mas à sociedade tecnológica, que é
multicultural, globalizada e apresenta aos indivíduos desafios enormes. Viver
hoje em dia é muito mais complexo do que há 50 anos: exige novos conhecimentos,
novas competências.
Há quem diga que muitas pessoas trabalham bem com a cabeça, muitas trabalham bem com as mãos, mas poucas sabem trabalhar com as duas ao mesmo tempo. O que o senhor pensa sobre isso?
Há quem diga que muitas pessoas trabalham bem com a cabeça, muitas trabalham bem com as mãos, mas poucas sabem trabalhar com as duas ao mesmo tempo. O que o senhor pensa sobre isso?
PERRENOUD
Essa ideia é um estereótipo. Todos nós trabalhamos com a cabeça. É impossível
fazer qualquer coisa sem ela. E mesmo em trabalhos intelectuais há muitos
aspectos práticos, como escrever, classificar, gerir o tempo. Não existe
oposição entre atividade intelectual e manual. Pelo contrário: é necessário
reconhecer que em toda tarefa existe uma parte de inteligência, sabedoria,
antecipação e raciocínio. Mesmo um lixeiro ou um porteiro, que parecem fazer
algo muito simples, estão sempre tomando decisões, avaliando prós e contras.
O Ensino Fundamental deve preparar para a prática?
O Ensino Fundamental deve preparar para a prática?
PERRENOUD
Mas que prática? A Educação Básica realmente não prepara para o exercício de
uma profissão, mas para a prática da cidadania, da vida social, associativa,
sexual, amorosa e familiar. Todas essas vidas são muito importantes, e é
possível associar a educação fundamental a elas.
O que o senhor pensa dos ciclos de aprendizagem, que no Brasil são vistos como uma solução de urgência contra a repetência?
O que o senhor pensa dos ciclos de aprendizagem, que no Brasil são vistos como uma solução de urgência contra a repetência?
PERRENOUD
Os ciclos de aprendizagem não são uma meta, mas um meio. Não são uma indicação
de modernidade ou uma estrutura complicada por puro prazer; são um instrumento
de trabalho. Devem ser o reflexo de uma pedagogia diferente.
Um dos desafios da educação atual é transpor a linguagem científica e tecnológica para a linguagem da escola. Como se capacitar melhor para isso?
Um dos desafios da educação atual é transpor a linguagem científica e tecnológica para a linguagem da escola. Como se capacitar melhor para isso?
PERRENOUD
Esse problema não é novo, mas está ganhando importância à medida que a cultura
científica se expande. Toda disciplina escolar exige um trabalho de
transposição, ou seja, deve tornar-se acessível a um público que não é composto
de pesquisadores ou produtores do saber. Dessa forma, toda escola se torna uma
imensa empresa de vulgarização, no bom sentido do termo. A formação de
professores exige não só que eles dominem o saber mas também que saibam fazer a
transposição desse saber. Como explicar frações a alunos de 12 anos? E números
negativos a adolescentes de 13? São conceitos muito complexos, que, se forem
explicados por alguém que não tem a competência da transposição, ou didática,
só serão compreendidos pelos melhores estudantes. Os outros passarão por burros
ou preguiçosos. Na verdade, a incapacidade é do educador. Traduzir é a
responsabilidade principal do professor. Não basta saber, senão todos nós
poderíamos lecionar. É necessário ter a competência específica para ser um
tradutor de conhecimento.
Como o professor pode se tornar um bom tradutor de conhecimento?
Como o professor pode se tornar um bom tradutor de conhecimento?
PERRENOUD
Essa competência deveria estar no centro da formação inicial, mas infelizmente
isso nem sempre acontece. Muitas vezes, no Ensino Fundamental, basta conhecer a
matéria para começar a lecionar. Nesse caso, é necessário rever a formação
inicial dos docentes para dar mais ênfase às competências de transposição e de
gerenciamento do saber. A habilidade se desenvolve ao longo da vida, à medida
que surgem os obstáculos. Alguém que explica frações e percebe que talvez
quatro de cada cinco alunos não entenderam absolutamente nada de sua aula
deverá tentar na aula seguinte ser mais concreto, achar novos exemplos. Esse
processo não deve acabar nunca, pois os estudantes se renovam e há sempre
alguns para os quais é necessário encontrar uma linguagem nova. Idealmente, um
professor que de início era compreendido por três crianças em uma classe de 30
passará a ser compreendido por seis, depois por nove e finalmente por todas.
Agir na Urgência e Decidir na Incerteza é o título de um de seus livros. Como o professor pode agir diante do imprevisível?
Agir na Urgência e Decidir na Incerteza é o título de um de seus livros. Como o professor pode agir diante do imprevisível?
PERRENOUD
Quanto mais qualificado for um profissional, maior deverá ser sua capacidade de
enfrentar o imprevisível. Isso se aprende, e não é apenas na carreira de
professor que é preciso improvisar. Como preparar as pessoas para isso? É
necessário trabalhar a dimensão afetiva: a angústia, o medo de improvisar ou a
resistência em abandonar uma estratégia habitual que se revela ineficaz. É uma
tarefa que exige lutar contra toda espécie de perfeccionismo e que demanda
tempo. A experiência ensina o profissional a discernir uma série de fatores. Um
professor experiente sabe o que acontece em sua classe, a tal ponto que seus
alunos pensam que ele tem olhos nas costas! Ele escuta ruídos, percebe quando
começa a agitação e quando a concentração diminui. Quanto maior sua capacidade
perceptiva, maior sua habilidade em improvisar.
Philippe Perrenoud, 60 anos, é doutor em sociologia e antropologia e professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Estudioso da evasão e das desigualdades na escola e especialista em práticas pedagógicas em instituições de ensino, é diretor do Laboratório de Pesquisas sobre a Inovação na Formação e na Educação (Life), também de Genebra.
Philippe Perrenoud, 60 anos, é doutor em sociologia e antropologia e professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Estudioso da evasão e das desigualdades na escola e especialista em práticas pedagógicas em instituições de ensino, é diretor do Laboratório de Pesquisas sobre a Inovação na Formação e na Educação (Life), também de Genebra.
Material retirado do site revistanovaescola.abril.com
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