CRIME MAIS QUE PERFEITO
Quando o furgão contornou a esquina e parou diante do nº 168, Davi abriu
a caderneta e anotou: Quinta-feira, chegada, 4h 15min. Assistiu ao
leiteiro que, com passadas rápidas, deixou o litro de leite à porta e retornou
ao furgão, posto logo em movimento. Davi escreveu: saída, 4h 20 min.
Embolsou a caderneta, desprendeu-se do pilar que lhe servia de esconderijo.
Planejava o crime original.
Voltara para casa assim como saíra, invisível. Subiu a escada, parou no
corredor. O quarto de tia Olga fechado, mas, no de Cláudia, a luz riscava o
chão pela fresta da porta. Empurrou-a com cuidado, entrou no quarto e
contemplou a irmã adormecida. Para Davi, ela seria sempre uma criança. Os olhos
dele foram ficando mansos, os lábios esboçaram um sorriso... Um leve ruído: a adoração
se encobriu de trevas.
Com a mesma cautela, saiu para o corredor e logo entrou em seu quarto. A
lembrança súbita de Jorge Antar dissipou a beleza deixada em seus olhos pela
moça em doce sono. Aquele noivado. Revoltava-se com o amor de Cláudia pelo
malandro. Conhecia-o bem: vivia de golpes financeiros, além de possuir, em
segredo, um harém. O malandro visava à herança da moça, inocente e apaixonada.
Não, Jorge não seria o homem de Cláudia, dessa Cláudia que ele, substituindo o
pai ajudara a criar. Há dias, por isso, resolvera mudar seu comportamento, não
agravar, com novas rixas, suas relações com a irmã. Recolhera conselhos,
reprimira censura e ameaças, enquanto o plano diabólico progredia na ardência
do cérebro, como o relógio trabalhando no interior da bomba.
Deitado na cama leu a caderneta: “leiteiro” Segunda-feira, chegada, 4h
08 min. – saída, 4h 15 min.; Quarta-feira, chegada, 4h 05 min. – saída, 4h 12
min. Na última anotação: chegada, 4h 15 min. – saída, 4h 20 min. O furgão
parava na rua das Margaridas, nº 168, sempre depois das 4 horas da madrugada, e
em sua casa às 3 horas, mais ou menos. Plano feito, perfeito. E mais perfeito
ainda, porque Cláudia, conforme havia dito, iria passar o fim de semana, na
capital, fazendo compras e preparando seu espírito para o casamento.
Davi já conhecia todos os hábitos de Jorge: no sábado, acordava mais
cedo, tomava seu desjejum e saía de casa para o “trabalho”, antes da criada
entrar em serviço. Aquele plano era exato como a sucessão das horas, infalível
como a própria morte...
Sexta-feira, a véspera da perfeição. A noite demorou, mas acabou gerando
a madrugada. O motor do caminhão forçou a marcha. Era o leiteiro virando a
esquina. Davi ouviu a parada em frente de sua casa; o tilintar de vidros. Os
passos de retorno, a batida do portão. Sentou-se na cama, calçou o tênis.
Levantou-se, foi à cômoda, abriu a gaveta e meteu o vidrinho no bolso.
Apanhando a lanterna, clareou o relógio de pulso: 3h 20min. Calçou as luvas que
estavam debaixo do travesseiro. Iluminando o caminho, chegou à sala, abriu a
porta, cuidadosamente pegou o litro de leite pelo gargalo e depois seguiu para
a copa. Foi à pia, retirou a tampa da vasilha, derramou um pouco de leite,
substituindo pelo conteúdo do vidrinho que trouxera. Recolocou a tampa, meteu o
litro de leite no bolso largo do casaco. Abotoou o casaco, saiu pela porta da
cozinha. Fez sumir na lata de lixo o vidrinho lavado. Luz sobe o pulso: 3h 35
min.
Seguiu para a casa de Jorge, atingindo-a pelos fundos. Agachando-se,
escondeu sob o tanque de lavar roupas. Relógio iluminado: 4h.
Depois de dez minutos, o furgão parou em frente à casa. Davi decifrou a
jovialidade do entregador pelos passos meio dançados. De novo, os passos. O
motor pulsando, a neblina tragando as luzes vermelhas do furgão.
Sempre encostado à parede, Davi caminhou até à porta lateral da casa
onde uma pequena entrada o protegia da visão da rua. Na soleira de mármore,
aproximou os dois litros de leite.
Levantou-se, enfiou no bolso do casaco o que fora deixado para Jorge, com
a mesma precaução, dirigiu-se ao lugar de espera, perto do tanque. Retomou o
caminho de volta, pisando sempre na parte cimentada do quintal a fim de não
largar vestígios de seu tênis.
A neblina espessa não venceu a intrepidez da caminhada de volta, última
pedra do mosaico delituoso. Fechando-se na cozinha de sua casa, sentiu-se
liberto. Tonificado pelo descanso de alguns segundos, repôs em seus lugares o
casaco, o litro de leite e as luvas. Depois de tirar os tênis, acendeu o
isqueiro, aqueceu-lhes as solas para secá-las mais rapidamente. Em seguida,
limpou-os com um pano e guardou-os no lugar costumeiro. Preparado para dormir,
ingeriu uma pílula. Caiu na cama, com um suspiro de
alívio. Em breve o
cansaço e o hipnótico trouxeram o sono que surpreendeu Davi no gozo de sua obra
perfeita.
Quando amanheceu, gritos:
—Davi, acorda. Acorda, menino!
E a tia Olga começou a agitá-lo.
— O que é que há, titia?
— Estão aí dois homens da polícia que querem falar com você.
— Da polícia? Diga-lhes que descerei imediatamente. Enquanto as mãos
trêmulas lavavam o rosto, pensou: “É impossível. Não cometi nenhum erro.
Ninguém me viu”. Revisou todos os seus atos: não encontrou a menor falha.
Amarrando o roupão, desceu a escada.
—Sr. Davi Ortiz? Carlos Antunes, delegado de plantão.
— Não estou entendendo...
— Estou aqui em cumprimento de um dever bastante desagradável.
— Como assim?
— Antes de pedirmos a colaboração do senhor, no entanto...
— Sim?
— Jorge Antar foi encontrado morto, esta manhã, na casa em que morava.
— Que horror!
— Ao lado dele, também morta... a senhorita Cláudia, irmã do senhor.
Acreditamos que se suicidaram, de acordo com as primeiras investigações, com
veneno misturado ao leite.
(Luiz Lopes Coelho, A morte no envelope)
VOCABULÁRIO:
Furgão: Carro coberto, para transporte de bagagens ou
pequena carga.
Fresta: Abertura estreita na parede, para deixar passar a
luz e o ar.
Dissipar: dispersar, desfazer, fazer desaparecer.
Visar: Ter como objetivo; ter em vista.
Jovialidade: Alegre, prazenteiro.
Precaução: Cautela, cuidado.
Espesso: Grosso, denso.
Intrepidez: Valentia, coragem.
Mosaico: Embutido de pedrinhas de cores, dispostas de modo
que formem desenhos.
Delituoso: Que constitui
delito; culposo.
Tonificar: Dar vigor a; fortificar.
Hipnótico: substância que produz sono.
Gozo: prazer, satisfação.
1. A frase que apresenta a ideia principal do texto
é:
A) “Planejava o crime original”.
B) “Davi escreveu: saída, 4h 20min”.
C) “Quando o furgão contornou a
esquina”.
D) “Davi abriu a caderneta e anotou”.
E) “Acreditamos que se suicidaram.”
2. A intenção de Davi Ortiz ao anotar a chegada e a
partida do leiteiro era
A) saber o horário em que o leite chegava
nas casas.
B) evitar que algo desse errado em seu plano.
C) fazer anotações sobre o movimento dos
furgões.
D) conhecer todos os hábitos de Jorge.
E) anotar as casas que recebiam leite.
3. Em “Um leve ruído: a adoração se encobriu de
trevas” , o que fez Davi mudar de atitude foi o fato de
A) Cláudia esboçar um leve
sorriso.
B) o quarto da tia Olga estar fechado.
C) ter-se lembrado do noivo de
Cláudia.
D) Cláudia se mexer na cama.
E) estar chegando a hora de o leiteiro passar.
4. A expressão “...além de possuir, em segredo
um harém.” significa que o noivo
A) era um sultão árabe que possuía muitas
mulheres.
B) já era
casado.
C) tinha em sua casa muitas esposas.
D) trocava constantemente de
esposas.
E) vivia cercado de mulheres.
5. A palavra “trabalho” escrita entre aspas, deve
ser vista como uma ironia, devido ao fato de (o)
A) antagonista trabalhar em ofícios
desgastantes.
B) trabalho do personagem ser muito cansativo.
C) noivo possuir um
harém.
D) Jorge Antar trabalhar em ofícios não
respeitáveis.
E) jovem ser responsável e ter bons hábitos.
6. O local escolhido por Davi para observar a
chegada do caminhão, antes do crime, foi
A) o fundo do
jardim.
B) atrás de um
pilar.
C) embaixo do tanque de lavar.
D) pequena lateral da
casa.
E) um esconderijo na parede.
7. É característica psicológica do protagonista o
fato de ele ser
A) relaxado.
B) desmotivado.
C)
calculista.
D)
tímido.
E) jovial.
8. O personagem principal não aprovava o casamento
da irmã com Jorge Antar porque
A) o noivo tinha um
harém.
B) o noivo era malandro e
mentiroso.
C) Cláudia não amava o noivo.
D) era muito
ciumento.
E) agia como pai da moça.
9. Todas as frases abaixo são precauções para
tornar o crime perfeito, exceto
A) “... pisando sempre na parte cimentada do
quintal...”
B) “Fez sumir na lata de lixo o vidrinho lavado”.
C) “Calçou as luvas que estavam debaixo do
travesseiro”.
D) “... aqueceu-lhes as solas para secá-las mais
rapidamente”.
E) “... contemplou a irmã adormecida.”
10. Ao saber que a polícia estava em sua casa, Davi
ficou:
A) aliviado e
feliz.
B) trêmulo e
agitado.
C) orgulhoso de seu plano.
D) temeroso de ter sido
descoberto.
E) tranquilo, despreocupado.
11. Apesar de não conhecer o rapaz, Davi concluiu
que o entregador de leite era jovem porque
A) entregava o leite com
rapidez.
B) parecia dançar quando andava.
C) sabia dirigir um furgão.
D) a neblina tragava as luzes vermelhas do furgão.
E) acordava de madrugada todos os dias.
12. Para não levantar suspeitas, Davi tomou algumas
atitudes com relação à irmã. Uma delas foi:
A) reprimir Cláudia a toda
hora.
B) não lhe dar mais
conselho.
C) não falar mais com ela.
D) contemplar a irmã
adormecida.
E) deixá-la viajar com o noivo.
13. A lógica do título “Crime mais que perfeito”
foi fundamentada com o fato de que
A) o personagem principal matou apenas Jorge
Antar.
B) por ironia, Davi matou também a irmã
do criminoso.
C) a polícia achava que fosse
suicídio.
D) tudo fora premeditado com muita perfeição.
E) houve uma total impunidade do protagonista.
14. Com a frase: “Plano feito, perfeito” ,o
protagonista concluía que
A) Cláudia casaria com outro
homem.
B) valeria a pena tantas noites em
claro.
C) o crime não seria descoberto.
D) o furgão pararia na rua das margaridas, nº
168.
E) Cláudia viajaria na véspera do crime.
15. Cláudia Ortiz disse ao irmão que viajaria na
sexta-feira para a capital. No entanto, ela se encontrava no (a)
A) companhia do
noivo.
B) shopping, fazendo
compras.
C) quarto de tia Olga.
D) casa de uma
amiga.
E) seu quarto, dormindo.
16. Em “A noite demorou, mas acabou gerando a
madrugada”, representa que a(o)(s)
A) noite passava com
rapidez.
B) madrugada demorou a
chegar.
C) era véspera do dia do casamento.
D) horas passaram despercebidas.
E) tempo estacionou.
17. O fato surpreendente no desfecho da história
foi
A) tia Olga gritando
desesperadamente.
B) a chegada da polícia na casa de Cláudia.
C) Cláudia não estar preparando o espírito para o
casamento.
D) Jorge Antar ter sido encontrado morto.
E) a morte acidental de Cláudia.
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