Leia
com atenção o texto a seguir.
O
sobrevivente
Na
cadeia, adotou uma atitude humilde, estratégia à qual atribui a sobrevivência
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Com uma caixa de engraxate pintada de amarelo pendurada no ombro, o rapaz cruzou a rua em minha direção:
-Não sei se o senhor lembra de mim, mas quando estive lá me chamavam de Neguinho de Guaianases, para diferenciar do finado Negão de Pirituba que era alto e forte.
Para ser sincero, não lembrava dele nem do finado, mas se dizia que estivera lá, pelo menos ficava claro de onde nos conhecíamos. Todo ex-presidiário que encontro pela rua se refere à extinta Casa de Detenção dessa forma, como se trouxesse mau agouro pronunciar o nome do presídio.
-Quanto tempo você cumpriu lá?
-Seis anos.
-Não voltou mais para a cadeia?
-Deus me livre, agora sou trabalhador.
-E dá para viver engraxando sapato?
Explicou que, saindo de casa às sete da manhã e voltando às nove da noite, conseguia tirar R$ 40 a R$ 50 por dia, quantia suficiente para pagar os R$ 150 do aluguel de um cômodo no Bexiga e as demais despesas fixas.
E ainda sobrava para visitar os irmãos em Itaquaquecetuba aos domingos, para um baile em Pinheiros de vez em quando e para pagar o hotelzinho na saída, nas noites em que os céus ouviam suas preces.
Com a caixa amarela nas costas, percorria dez a quinze quilômetros por dia no encalço da clientela:
-Procuro passar em lugar que tem homem parado: ponto de táxi, porta de bar, restaurante com fila de espera, praça com aglomeração de aposentado. Cobro de acordo com a aparência do cidadão: R$ 2 se aparentar ser trabalhador; R$ 5 se tiver cara de rico.
Neguinho foi aluno comportado até os treze anos, quando o primo que mais admirava o convidou para distribuir panfleto no Largo da Concórdia. Nessa fase, pegou o gosto por dinheiro, por roupas da hora e conheceu a maconha. Para desgosto do pai, pedreiro em Guaianases, parou de estudar.
Um dia, o primo decidiu mudar de ramo:
-Disse que não se conformava com aquela mixaria; tinha nascido para uma vida melhor. Levantou a camisa e exibiu o revólver no cinto. "Vem comigo, é apontar a arma e pegar o dinheiro."
Neguinho não tinha coragem; dois de seus amigos de infância haviam acabado de morrer num tiroteio na Vila. Mas, o mais velho insistiu:
-Eu enquadro as vítimas e você recolhe o dinheiro e os objetos de valor. É só ficar de cabisbaixo para ninguém te reconhecer mais tarde. Não requer prática nem tampouco habilidade.
Na primeira vez, quando assaltaram uma loja do bairro, tudo se passou como o primo previra. Na partilha, coube R$ 300 para cada um:
-Nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Deu gosto no bolso. Comprei blusa para minha mãe, camiseta para o pai, dei dinheiro para os irmãos e saí com o primo para gastar na cidade.
Aos 17 anos foi parar na Febem. Saiu com 18, mais esperto e com novas amizades. Juntou-se ao inseparável primo e formaram uma quadrilha.
Meses mais tarde, o primo foi morto por justiceiros a serviço dos comerciantes da Vila.
Uma noite, Neguinho e dois comparsas assaltaram um posto de gasolina e fugiram num carro roubado. Cinco minutos mais tarde foram cercados por duas viaturas de polícia. Os policiais gritaram para que jogassem as armas e saíssem com as mãos na cabeça. Pensaram em reagir, mas prevaleceu o bom senso do finado Alemão:
-Era o mais experiente de nós. Disse que se a gente atirasse morria no ato: era três contra oito.
Preso em flagrante, foi levado para a detenção. Acabou condenado a seis anos e três meses por dois assaltos a mão armada; nada mal para quem havia praticado mais de trinta.
Na cadeia, adotou uma atitude humilde, estratégia à qual atribui a sobrevivência:
-Dos que tinham fama de bandidão, sangue nos olhos, só um escapou vivo.
Quando Neguinho foi libertado, construiu a caixa de engraxate, pintou-a de sua cor favorita e jurou nunca mais por os pés num lugar daqueles.
Quando perguntei se era mais feliz engraxando sapato, respondeu com um sorriso:
-Nem compara, doutor. Sabe o que é viver com medo? Qualquer carro que passa, imaginar que os justiceiros chegaram? O senhor entrar numa padaria, pedir uma média com pão e manteiga e não ter o direito de sentar de costas para a porta?
VARELLA,
Drauzio. A Teoria das janelas quebradas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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