Numa sociedade voltada para a produção em série
e para o consumo em massa, na qual a pressão de necessidades artificialmente
criadas se faz presente em todos os setores, até que ponto a propaganda
interfere em nosso dia-a-dia? De maneira bem-humorada, Luís Fernando Veríssimo,
no texto a seguir, procura responder a essa questão.
O
ESTRANHO PROCEDIMENTO DE DONA DOLORES
(Luis
Fernando Veríssimo)
Começou na mesa do almoço. A família
estava comendo — pai, mãe, filho e filha — e de repente a mãe olhou para o
lado, sorriu e disse:
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.
— O que é isso, Dolores?
— Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.
— Acho que a mamãe pirou de vez.
— Brincadeira dela...
A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.
— Adivinhem o que tem de sobremesa?
Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.
— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. — Gelatina Quero
Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:
— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
— Dolores...
Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
— Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.
— Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
— Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa,
mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.
— Ela está nervosa, é isso.
— Claro. É uma fase. Passa logo.
— É melhor nem chamar a atenção dela.
— Isso. É nervos.
Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:
— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.
Ou:
— Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.
— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?
— O quê?
— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.
— Dolores...
Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:
— Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!
Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
— Mãe, eu...
— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmara que só ela via, enquanto passava creme no rosto.
— Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.
Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.
— Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...
— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.
O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.
— O que é isso, Dolores?
— Tá doida, mãe?
Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.
— Acho que a mamãe pirou de vez.
— Brincadeira dela...
A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.
— Adivinhem o que tem de sobremesa?
Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.
— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. — Gelatina Quero
Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.
O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:
— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!
Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.
— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.
— Dolores...
Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.
— Eles vão gostar.
O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.
— Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.
— Pare com isso, Dolores.
Mas dona Dolores não ouvia.
Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa,
mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.
— Ela está nervosa, é isso.
— Claro. É uma fase. Passa logo.
— É melhor nem chamar a atenção dela.
— Isso. É nervos.
Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:
— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.
Ou:
— Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.
Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.
— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?
— O quê?
— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.
— Dolores...
Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:
— Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!
Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.
— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?
— Mãe, eu...
— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.
O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmara que só ela via, enquanto passava creme no rosto.
— Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o frescor que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.
Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.
— Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...
COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO
1. O “problema” de dona Dolores se
manifesta à mesa, quando a família está almoçando. Todos ficam chocados com os
sorrisos, com o tom de voz de dona Dolores e com as frases ditas por ela.
a) O que há de estranho no procedimento de dona Dolores?
b) A que tipo de linguagem se assemelham as frases de dona
Dolores?.
c) Que meios de comunicação veiculam mensagens desse tipo?
d) Os sorrisos e o tom de voz apresentados nas falas de dona
Dolores também são comuns nesse tipo de mensagem? Por quê? Que ideia pretendem
veicular?
e) Como se sentiam os filhos e o marido diante das atitudes da
personagem?
2. Releia todas as falas de dona
Dolores:
a) Quais são os produtos que ela “anuncia” e a que membro da
família cada um deles se destina?
b) Desses produtos, quantos se destinam exclusivamente a ela
mesma? Apenas um: o
hidratante.
c) Pelo número de produtos destinados a ela própria, a que
conclusão se chega: ela se preocupa mais consigo mesma ou com a família?
Justifique.
3. Segundo Nelly de Carvalho,
especialista em linguagem publicitária, a mulher é vista pela publicidade
como compradora. Veja o que a pesquisadora afirma:
“[a mulher] desempenha a função de
protetora/provedora das necessidades da família e da casa, constituindo a
própria imagem da domesticidade (de domus,
‘casa’). Isso não significa, porém, arcar com o ônus material do lar, ou seja,
pagar as despesas, mas com o trabalho de sair de casa, escolher e comprar, ela
é a compradora oficial.”
(Publicidade
— A linguagem da sedução.
São Paulo: Ática, 1996. p. 23-4.)
De acordo com o texto:
a) Dona Dolores desempenha, socialmente, alguma atividade
profissional?.
b) Se mulheres como dona Dolores não arcam com o ônus material do
lar, isto é, com as despesas, então por que muitas campanhas publicitárias têm
as donas de casa como alvo?
c) Retire do texto ao menos duas frases que comprovem que dona
Dolores é a protetora/provedora de toda a família.
4. A crônica é um
gênero textual escrito como objetivo de
emocionar, divertir ou fazer refletir sobre e as atitudes das pessoas
que nos cercam. Com que objetivo Veríssimo
teria produzido esta crônica?
5. A linguagem pode ser
compreendida como expressão da identidade do ser humano, ou seja, ela é o meio
que utilizamos para expressar o que somos. Com base nessa informação, responda:
a) Levando-se em conta que dona Dolores é uma pessoa com
pensamentos e desejos próprios, o que significa o fato de ela perder a própria
linguagem e substituí-la pela linguagem publicitária?
b) Pode-se dizer que o texto critica a influência dos meios de
comunicação sobre o comportamento das pessoas? Por quê?
6. Observe as palavras destacadas
nestas frases:
“— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias.”
“— Todos encontram tudo
o que querem [...]”
“E agora todos aqui em casa respiram aliviados.”
“[...] para que você possa descansar.”
“Agora escovar os dentes é um prazer [...]”
a) Segundo os anúncios publicitários, como passa a ser a vida
quando consumimos os produtos anunciados?
b) Qual é, então, nos anúncios publicitários, a relação existente
entre “felicidade familiar” e consumo?
7. Como conclusão, indique qual ou
quais das afirmativas a seguir resumem as ideias principais do texto:
a) Dona Dolores é uma dona de casa feliz, pois consegue
desempenhar bem seu papel de organizadora do lar.
b) O humor do texto provém, em grande parte, da alteração de
contextos. As frases ditas por dona Dolores passam a ser engraçadas porque
estão fora de seu contexto habitual — o contexto publicitário dos meios de
comunicação.
c) De forma bem-humorada, o autor faz uma crítica aos valores da
sociedade de consumo, em especial à forma como a publicidade e os meios de
comunicação criam falsas ilusões nas pessoas.
d) O objetivo central do texto é fazer uma crítica ao papel de
dona de casa desempenhado pela mulher, que acaba se anulando como pessoa em
benefício da família.
8. O narrador pode ou não participar dos fatos narrados. Informe o tipo de
narrador da crônica lida.
Caros colegas professores, o gabarito será postado posteriormente.
Caros colegas professores, o gabarito será postado posteriormente.
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