RELATO PESSOAL
MINHA PRIMEIRA PROFESSORA
A primeira presença em meu aprendizado
escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. É
claro que eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto. Chamava-se Eunice Vasconcelos
(1909-1977), e foi com ela que eu aprendi a fazer o que ela chamava de
"sentenças".
Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de
Eunice, aos 6 anos. Era, portanto, a década de 20. Eu havia sido alfabetizado
em casa, por minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades
financeiras, mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me
foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha
experiência, escritas com gravetos no chão de terra do quintal.
Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de
Eunice e o mundo das minhas primeiras experiências - o de minha velha casa do
Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores
frondosas. A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de
casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais.
Isso porque a escola de Eunice não me
amedrontava, não tolhia minha curiosidade.
Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17
anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação
a uma indiscutível amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos
problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada
língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se
tivesse dito a mim, ainda criança pequena: "Paulo, repara bem como é
bonita a maneira que a gente tem de falar!..." É como se ela me tivesse
chamado.
Eu me entregava com prazer à tarefa de "formar sentenças". Era
assim que ela costumava dizer. Eunice me pedia que colocasse numa folha de
papel tantas palavras quantas eu conhecesse. Eu ia dando forma às sentenças com
essas palavras que eu escolhia e escrevia. Então, Eunice debatia comigo o
sentido, a significação de cada uma.
Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da
língua - os verbos, seus modos, seus tempos... A professorinha só intervinha quando
eu me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar
regras gramaticais.
Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua
família, sua irmã Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exílio e, de lá,
me correspondia com Eunice. Tenho impressão de que durante dois anos ou três
mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
Não se casou. Talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a
amorosidade que a gente tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco
como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a
docência no fim da minha vida.
Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem
normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são
saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do
Ataulfo Alves: "Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o
bê-á-bá'
(Paulo
Freire, publicado pela Revista Nova Escola em dezembro de
1994).
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