1. Conquistando
um coração.
Quando se
deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos
conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos
mínimos detalhes,
que já se
tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e
aceitar cada espaço vago.
...e então,
quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado
dele, vai existir uma parte de alguém
que seguirá conosco.
Uma metade
de alguém que será guiada por nós e o nosso coração passará a bater por conta desse outro
coração.
Eles
sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de
instantes de alegria.
Baterá
descompassado muitas vezes e sabe por que?
Faltará a
metade dele que ainda não está junto de nós.
Até que um
dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte
e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos
entregará a metade que faltava.
... e é
assim que se rouba um coração, fácil não?
Pois é, nós
só precisaremos roubar uma metade,
a outra virá
na nossa mão e ficará detectado um roubo então!
E é só por
isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais
conseguiram amar alguém... é simples...
é porque
elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e
somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações
são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com
você
Luís
Fernando Veríssimo
2. PAPOS
“- Me
disseram...
-
Disseram-me
- Hein?
- O
correto é ‘disseram-me’. Não ‘me disseram’.
- Eu falo
como quero. E ti digo mais... Ou ‘digo-te’?
- O quê?
- Digo-te
que você...
- O ‘te’
e o ‘você’ não combinam.
- Lhe
digo?
- Também
não. O que você ia me dizer?
- Que
você ta sendo grosseiro, pedante e chato. E que vou ti partir a cara. Lhe
partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?
-
Partir-te a cara.
- Pois é.
Partir-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
- É para
o seu bem.
-
Dispenso as suas correções. Vê se esquece- me. Falo como bem entender. Mas uma
correção e eu...
- O quê?
- O mato.
- Que
mato?
- Mato-o.
Mato-lhe. Matar- lhe- ei- te. Ouviu bem?
- Eu só
estava querendo...
- Pois
esqueça- o e pára- te. Pronome no lugar certo é para elitismo.
- Se você
prefere falar errado...
- Falo
como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou entenderem- me?
- No
caso... Não sei.
- Ah, não
sabes? Não o sabes? Sabes- lo não?
-
Esquece.
- Não.
Como ‘esquece’ ou ‘esqueça’? Ilumine- me. Mo diga. Ensines- lo- me, Vamos.
-
Depende.
-
Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar- me- lo- ias se o soubesse, mas não
sabes-o.
- Está
bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.
-
Agradeço-lhe a permissão para falar errado que me dás. Mas não posso mais
dizer-lo-te o que dizer-te-eia.
- Por
quê?
- Porque,
como todo esse papo, esqueci-lo.”
Veríssimo,
Luis Fernando. Novas
comédias da vida pública – a versão dos afogados. Porto Alegre: L&PM,
1997.
3. Brincadeira
Começou
como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
- Eu sei
de tudo.
Depois de
um silêncio, o outro disse:
- Como é
que você soube?
- Não
interessa. Sei de tudo.
- Me faz
um favor. Não espalha.
- Vou
pensar.
- Por
amor de Deus.
- Está
bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu
que tinha poder sobre as pessoas.
- Sei de
tudo.
- Co-
como?
- Sei de
tudo.
- Tudo o
quê?
- Você
sabe.
- Mas é
impossível. Como é que você descobriu?
A reação
das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
- Alguém
mais sabe?
Outras se
tornavam agressivas:
- Está
bem, você sabe. E daí?
- Daí
nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
- Se você
contar para alguém, eu...
- Depende
de você.
- De mim,
como?
- Se você
andar na linha, eu não conto.
- Certo.
Uma vez,
parecia ter encontrado um inocente.
- Eu sei
de tudo.
- Tudo o
quê?
- Você
sabe.
- Não
sei. O que é que você sabe?
- Não se
faz de inocente.
- Mas eu
realmente não sei.
- Vem com
essa.
- Você
não sabe de nada.
- Ah,
quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
- Não
existe nada.
- Olha
que eu vou espalhar...
- Pode
espalhar que é mentira.
- Como é
que você sabe o que eu vou espalhar?
- Qualquer
coisa que você espalhar será mentira.
- Está
bem. Vou espalhar.
Mas dali
a pouco veio um telefonema.
- Escute.
Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.
- Aquilo
o quê?
- Você
sabe.
Passou a
ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
- Você
contou para alguém?
- Ainda
não.
- Puxa.
Obrigado.
Com o
tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um
amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
- Por que
eu? – quis saber.
- A
posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
- Por
quê?
- Pela
sua descrição.
Subiu na
vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca para
falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um
telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
- Sei de
tudo.
- Co-
como?
- Sei de
tudo.
- Tudo o quê?
- Você
sabe.
Resolveu
desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento
repentino. Investigara. O que ele estaria tramando? Finalmente foi descoberto
numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram muitos
carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos.
Os vizinhos contam que mais se ouvia era a dele, gritando:
- Era
brincadeira! Era brincadeira!
Foi
descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas
que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia
demais.
(Luis
Fernando Veríssimo. Comédias da vida privada. Porto Alegre:
L&PM, 1995. P. 189-91.)
4. O lixo
Encontram-se
na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se
falam.
- Bom
dia...
- Bom
dia.
- A
senhora é do 610.
- E o
senhor do 612
- É.
- Eu
ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois
é...
-
Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu
quê?
- O seu
lixo.
- Ah...
- Reparei
que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na
verdade sou só eu.
- Mmmm.
Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que
eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
-
Entendo.
- A
senhora também...
- Me
chame de você.
- Você
também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em
seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que
eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às
vezes sobra...
- A
senhora... Você não tem família?
- Tenho,
mas não aqui.
- No
Espírito Santo.
- Como é
que você sabe?
- Vejo
uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É.
Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é
professora?
- Isso é
incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela
letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O
senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois
é...
- No
outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más
notícias?
- Meu
pai. Morreu.
- Sinto
muito.
- Ele já
estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por
isso que você recomeçou a fumar?
- Como é
que você sabe?
- De um
dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu
lixo.
- É
verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu,
graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei.
Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
-
Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você
brigou com o namorado, certo?
- Isso
você também descobriu no lixo?
-
Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço
de papel.
- É,
chorei bastante, mas já passou.
- Mas
hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que
eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo
muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim.
Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
-
Namorada?
- Não.
- Mas há
uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu
estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você
não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já
está analisando o meu lixo!
- Não
posso negar que o seu lixo me interessou.
-
Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho
que foi a poesia.
- Não!
Você viu meus poemas?
- Vi e
gostei muito.
- Mas são
muito ruins!
- Se você
achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu
soubesse que você ia ler...
- Só não
fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo
da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho
que não. Lixo é domínio público.
- Você
tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa
vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa
parte mais social. Será isso?
- Bom, aí
você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem,
no seu lixo...
- O quê?
- Me
enganei, ou eram cascas de camarão?
-
Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu
adoro camarão.
-
Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar
juntos?
- É.
- Não
quero dar trabalho.
-
Trabalho nenhum.
- Vai
sujar a sua cozinha?
- Nada.
Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu
lixo ou no meu?
Luis Fernando
Veríssimo. O
Analista de Bagé. L&PM, 1981.
5. Pai não
entende nada
_ Um biquíni novo?
_ É, pai.
_ Você comprou um no ano passado!
_ Não serve mais, pai. Eu cresci.
_ Como não serve? No ano passado você tinha
14 anos, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim.
_ Não serve, pai.
_ Está bem, está bem. Toma o dinheiro.
Compra um biquíni maior.
_ Maior não, pai. Menor.
Aquele pai, também, não entendia nada.
Luis Fernando Veríssimo.
6. O Homem que Vivia Anedotas
— Sempre
deu tudo errado comigo. Desde criança.
—
Compreendo.
— Na
escola, não conseguia prestar atenção em nada.
Estava
sempre pensando em mulher nua.
— Espera
aí. Você é…
— Sou. O
Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei anedota.
— Mas as
histórias até que eram engraçadas.
—
Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu.
Meus pais
me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um psiquiatra.
— Não foi
esse o médico que...
— É.
Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira.
Um
chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.
— E aí
você disse…
— Eu
disse: "Me concentrar como, se o senhor não pára de mostrar figurinha
erótica?".
O senhor
está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em tratamento.
—
Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue.
— Como
não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.
— Por quê?
— Sabe
aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque
do carro
para ver se tinha gasolina, e tinha?
— Foi
você?
— Foi. No
hospital, tiveram que me reconstituir.
Pegaram
as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que…
— Só que
para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é ótima.
— Ótima
porque não foi com o senhor.
—
Desculpe. Foi horrível.
— Quando
saí do hospital comprei uma motocicleta.
Uma noite
na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que
vinham em
sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha entre as duas.
— E era
um automóvel. Essa eu conheço.
— Voltei
para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo.
Quando o
médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não podia pagar.
— E ele?
— Ele
disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.
— Grande!
Quer dizer, horrível. E seus pais?
— Está
vendo esse relógio? Está na família há gerações.
— É uma
beleza.
— No seu
leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me vendeu.
— Boa,
boa. Quer dizer, triste, triste.
— Me
casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era um refrigerador.
—
Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.
— O pior
não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz não
me
deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.
— Não
posso me conter. É que você teve uma vida engraçada.
—
Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de sádicas.
— Você
tem razão.
— Para
esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a dez mil metros de
altura,
ouviu-se
uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem piloto.
É
dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com vantagem
o
controle humano. Não há com o que se preocupar.
O sistema
foi exaustivamente testado é absolutamente
aprova de
falhas, de falhas, de falhas…".
— O avião
caiu e foi assim que você veio parar aqui?
— Não,
São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma
temporada
numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a Betty Friedman.
— Acho
que já vi esse cartum.
— Pois é.
Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me matar.
Não
conseguia fazer anda certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na cabeça.
— E aqui
está você.
— Não.
Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que dei um tiro
para o ar.
Aí
acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O senhor
ainda está rindo!
— Meu
filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu existem?
— Não,
São Pedro. Por favor. Não!
— O que é
que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto em Copacabana,
morreu
todo mundo e nós estamos com o céu lotado.
— Lotado?
Mas só a população de Copacabana lota o céu?
— É que
tinha os argentinos.
Você só
vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.
Luís
Fernando Veríssimo. "Sexo
na Cabeça", L&PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 15.
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